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A batalha pela “soberania” coloca o Brasil mais uma vez diante do espelho

  • Clipping Vitae
  • há 16 horas
  • 5 min de leitura

Não é verdade que o brasileiro sofre de complexo de vira-lata. Pelo contrário, os brasileiros se acham. E se acham muito. O Brasil é dono da Amazônia, de um território colossal, de uma população multicultural vibrante, praias lindas, comida espetacular, o SUS (esse não pode faltar) e a maior dádiva da natureza, a jaboticaba.

Mesmo com tudo isso, o gigante do Sul tem uma economia de pigmeu. O PIB do Brasil é menor que o da Califórnia, Texas e Nova York. Aviso aos ufanistas que não somei os PIBs não. O Brasil não dá para saída comparado com cada um dos estados separadamente. E não sou vira-latas. Tento ser realista. O Brasil é sensacional, mas quer jogar na liga errada, com o esporte errado. Pensando em economia, o Brasil é tão relevante para economias robustas como o Botswana. A comparação talvez não seja justa com o Botswana, mas preciso de algo que ajude a mostrar como o Brasil não é quem pensa que é.

A China, por exemplo, não vê o Brasil além de uma fazenda. O gigante pela própria natureza é, em essência, um fornecedor de grãos e proteínas. Além disso, é um preposto que a China tem para colocar a diante seus planos de fincar bandeira pelos lados de cá do planeta. O Brasil tem valor. É estratégico. Por isso a China finge tratar bem os brasileiros. Por isso a Casa Branca está punindo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo seu alinhamento completo com Pequim.

Nesse sentido, por mais que o Brasil tente passar uma imagem de maturidade institucional, há momentos em que nossa elite política e parte da opinião pública mostram um comportamento quase infantil. Um desses momentos veio à tona com a decisão dos Estados Unidos de aplicar a Lei Magnitsky ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

O debate que deveria estar sendo travado não é sobre “afrontas” simbólicas ou patriotadas de palanque. É sobre algo mais profundo: o que nos levou a esse ponto? Que tipo de atuação institucional estamos projetando para o mundo? E, principalmente, que tipo de país queremos ser?

A medida foi recebida com gritos de “afronta à soberania nacional”, “ingerência externa” e até “ataque à democracia brasileira”. Mas, como em tantas outras vezes, a gritaria foi desproporcional ao fato e reveladora da nossa dificuldade crônica, de boa parte dos brasileiros, de lidar com as regras do jogo.

Antes de entrar na espuma ideológica, vamos aos fatos: a Lei Magnitsky é um instrumento legal dos Estados Unidos e única e exclusivamente relacionado à jurisdição que os Estados Unidos têm sobre suas empresas, instituições e sistema financeiro. Aprovada em 2016 por seu Congresso, ela permite sanções contra estrangeiros envolvidos em corrupção e violações graves de direitos humanos. Trata-se de uma lei americana, com efeitos nos Estados Unidos, aplicada segundo os critérios dos Estados Unidos. Não obriga outros países a nada. Não anula decisões do STF. Não interfere na soberania de ninguém. Apenas diz o seguinte: certos indivíduos não são bem-vindos no sistema financeiro, empresarial e territorial americano. Simples.

No caso de Alexandre de Moraes, os EUA decidiram colocá-lo nessa lista. A decisão pode ser discutida, criticada, até contestada. Mas o ponto essencial é: isso foi uma manifestação da soberania americana, não uma violação à brasileira. Não houve extradição, sanção ao Brasil ou intromissão em assuntos internos. O que houve foi o uso legítimo de uma prerrogativa de um Estado soberano: escolher com quem quer ou não quer fazer negócios.

Mesmo assim, a reação no Brasil foi quase cênica. Parlamentares correram para as redes sociais em defesa da “honra nacional”, ministros se indignaram em entrevistas, e analistas de ocasião trataram a sanção como se fosse um ato de guerra. Mas o que realmente está em jogo não é a soberania. É o incômodo de ver uma figura poderosa colocada sob questionamento fora do circuito fechado da política brasileira.

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Vamos ser honestos: Moraes segue com sua toga, seu salário, seu gabinete e seus processos. Não foi deposto. Não foi julgado por tribunal internacional. Ele apenas deixou de ter acesso a benefícios associados ao sistema americano como e bancos, cartões, plataformas tecnológicas e, eventualmente, até companhias aéreas. Isso é um ataque à soberania brasileira?

Empresas americanas como Apple, Google e Netflix podem manter as contas de Moraes. Mas elas estarão dispostas a serem punidas em seus países sede por não cumprimento da lei? Esse impasse não tem absolutamente nada a ver com soberania. Alguém se lembra do argumento do próprio Moraes e de seus aliados sobre o X e outras redes sociais. Em resumo, se eles quisessem ter acesso ao mercado brasileiro teriam que cumprir com as regras nacionais. Nada mais soberano, não é mesmo?

Agora é o contrário. Se o Brasil quiser que essas empresas funcionem sem sobressaltos no Brasil terá que respeitar o fato que elas também são obrigadas a cumprir as leis de seus países. Sendo assim, se algum colega do ministro Moraes ou o governo emitir ordem para o descumprimento da medida, o Brasil pode privar milhões de brasileiros ao acesso aos serviços, caso as empresas se neguem a violar a lei americana para manter os serviços do ministro sancionado. Entas de tomas essas medidas, Lula e o STF precisam se perguntar se o Brasil virou uma pátria de Alexandres e se todos estão dispostos a abraçar a sansão em nome de um #eusouxandão.

O mesmo vale para bancos e corretoras. A decisão de manter ou cortar relações é deles. Mas o risco de retaliação do Tesouro americano também. Não se trata de “seguir ordens do imperialismo”, mas de cumprir as leis do próprio país já que você quer usufruir dos serviços prestados por eles e empresas de lá. É soberania, my brother.

Transformar tudo isso num suposto ataque à democracia brasileira é, além de impreciso, perigoso. Cria-se a ideia de que qualquer crítica vinda de fora é necessariamente injusta, ilegítima e hostil. Um tipo de nacionalismo de conveniência, que só aparece quando convém blindar os poderosos.

Mais preocupante ainda é o uso desse episódio para alimentar um discurso de vitimização institucional. Como se o Brasil estivesse sob ataque porque um de seus ministros foi sancionado por um país estrangeiro. Isso revela não força, mas fraqueza. Porque se a legitimidade de um magistrado depende do aval de Washington, então estamos diante um problema bem maior do que uma sanção.

É preciso abandonar a ideia de que soberania é escudo contra tudo. Soberania é autonomia, sim, mas também responsabilidade. Significa ter regras claras, instituições fortes e capacidade de lidar com críticas internas ou externas sem entrar em colapso emocional. Significa também reconhecer que os outros países são soberanos, e que podem tomar decisões que nos desagradam. E que isso, por si só, não é um crime.

O que os Estados Unidos fizeram foi exercer um direito que todos os países têm: decidir com quem querem ou não fazer negócios. O Brasil faz isso o tempo todo. Mantém sanções a países, toma posição em fóruns internacionais, reconhece ou deixa de reconhecer governos. Isso se chama política externa. Quando os outros fazem, a gente chama de ingerência. Quando nós fazemos, é diplomacia.

O debate que deveria estar sendo travado não é sobre “afrontas” simbólicas ou patriotadas de palanque. É sobre algo mais profundo: o que nos levou a esse ponto? Que tipo de atuação institucional estamos projetando para o mundo? E, principalmente, que tipo de país queremos ser? Um país que entende as regras do mundo em que vive ou um que vive de reclamar do juiz sempre que a bola entra no próprio gol?

Mas não. O periquito não vê nada disso. Apenas uma imagem superdimensionada dele mesmo.


 
 
 

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