EUA miram a juristocracia brasileira: o STF e o crepúsculo da justiça
- Clipping Vitae
- 18 de jul.
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“O homem que comete injustiça é mais infeliz que aquele que a sofre” (Platão, Górgias)
No ano de 1999, o penúltimo do século XX, Olavo de Carvalho manifestou o temor de que, se o século que se encerrava começara pedindo ditaduras e terminara clamando por democracia, o século seguinte fizesse o caminho inverso, demandando democracias e parindo ditaduras. Dito e feito. O “Século do Judiciário” – como foi caracterizado por mais de um tirano no Brasil – é o século da democracia meramente formal e cenográfica, da qual o povo passa a léguas de distância.
Olavo inspirava-se em uma célebre frase do escritor Georges Bernanos, segundo quem “a democracia não é o oposto da ditadura: é a causa dela”. E ambos, Bernanos e Olavo, decerto se inspiraram em Platão, que disse em A República (564b): “A democracia, ao conceder liberdade a todos, cria as condições para que um homem, ou um pequeno grupo, se apodere do poder e o exerça de forma tirânica”.
Com essa advertência, Platão pretendia mostrar como a liberdade desordenada permite a ascensão de um governo arbitrário ao poder. Com ela, o velho filósofo grego parece ter previsto o Brasil de 2025, onde o Supremo Tribunal Federal (STF), em sua pretensão de ordenar o cosmos político, ergue-se como um verdadeiro demiurgo judicial, legislando, julgando e executando com a soberba de quem se julga acima dos reles mortais.
A decisão de 26 de junho, que mutilou o artigo 19 do Marco Civil da Internet, obrigando plataformas digitais a exercerem censura preventiva sob o vago pretexto de combater “condutas ilícitas”, é mais que um atentado à liberdade de expressão; trata-se de uma revolta contra a ordem da justiça, que, desde Platão até São Tomás de Aquino, exige que a lei sirva ao bem comum, não ao capricho de uma casta. Os Estados Unidos, sob a administração Trump, reagiram com a ameaça de tarifas de 50% com base na Seção 301 da Lei de Comércio de 1974, denunciando as “restrições ilegais” do STF. Mas o que está em jogo não é apenas uma querela comercial: é a alma do Brasil, devorada por um Leviatã juristocrático que deglute e regurgita a “soberania nacional” em forma de slogan vazio.
O “Século do Judiciário” – como foi caracterizado por mais de um tirano no Brasil – é o século da democracia meramente formal e cenográfica, da qual o povo passa a léguas de distância
No seu último e mais extenso diálogo, Leis, Platão também alertou expressamente para o perigo de governantes que, sob o véu da autoridade, subvertem a ordem legal: “Onde a lei não tem autoridade, ali a cidade está à beira da ruína; mas onde a lei é soberana, acima dos governantes, ali reside a salvação da cidade” (Leis, 715d). Ao obrigar plataformas como Google e Meta a removerem conteúdos com base em critérios subjetivos e arbitrários, o STF inverte essa máxima. A decisão, aprovada por oito votos contra três, transforma as gigantes da tecnologia em inquisidores algorítmicos, forçados a antecipar os humores da Corte sob pena de multas e sanções. Como observou o advogado André Marsiglia, esse “dever de cuidado” – um eufemismo orwelliano – cria um efeito inibidor (chilling effect) que sufoca o verbo, desde o jornalismo investigativo até o humor político. A lei, que deveria ser, nas palavras de São Tomás de Aquino, “uma ordenação da razão para o bem comum”, torna-se um instrumento de arbítrio, onde a subjetividade dos juízes prevalece sobre a objetividade da justiça.
Sob administração de um sujeito que foi vítima pessoal da perversão da justiça, os EUA não tardaram em responder. O relatório do Escritório do Representante Comercial, de 15 de julho de 2025, acusa a regulação brasileira de ameaçar a “livre circulação de ideias” e impor custos desproporcionais às empresas americanas. A ameaça de tarifas, a vigorar a partir de 1º de agosto, é um golpe na economia brasileira, mas também representa a Nêmesis que pune a hybris do STF.
Como, novamente, ensinou Platão (Górgias, 469b): “o maior mal é cometer injustiça, pois o injusto não apenas prejudica os outros, mas corrompe a si mesmo”. O Supremo, ao se arvorar como chefe de Estado do país, comete essa injustiça, pois subverte a separação dos poderes e corrompe o Estado democrático que diz proteger. A licitação de 2024 para monitorar redes sociais, com relatórios diários e georreferenciamento, é um panóptico digital que ultrapassa a imaginação de Jeremy Bentham. A deputada Carol de Toni denunciou esse “olho que tudo vê” como um atentado à liberdade, mas a Corte, surda às críticas e cega à destruição causada, marcha para o abismo como um Weltgeist hegeliano – ao som, não de Die Walküre, mas de “Tocando em Frente”.
Essa aventura juristocrática é a mais pura inversão revolucionária, que troca a ordem natural pela vontade de uma nomenklatura togada. Nessa ópera do cerrado, o Congresso reduz-se a um espectador impotente. E o povo, que adorna essa democracia de festim, reduz-se também a um mutismo dolente de escravo.
A reação americana é, portanto, sintoma de um mal maior. O cientista político Thales Castro, do Iperid, observa que a retórica antiocidental do governo Lula, aliada às decisões do STF, cria um ambiente hostil que agora reverbera na economia. Fábio Coelho, do Google Brasil, alerta que o jornalismo e o humor político poderão ser vítimas da censura algorítmica. A Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão, liderada por Júlia Zanatta, denuncia a “subjetividade perigosa” dos critérios da Corte, mas o Supremo, esse Torquemada cibernético, permanece alheio aos clamores dos “hereges”.
Flávio Gordon
Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017). **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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