Frei Clodovis Boff: Igreja que troca o espiritual pelo social não é a Igreja de Cristo
- Clipping Vitae
- 25 de jul.
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O terremoto produzido pela carta do frei Clodovis Boff aos bispos do Celam cruzou as fronteiras da América Latina. O texto teve repercussão em alguns dos principais veículos de comunicação católicos do mundo, e já chegou até às mãos do papa Leão XIV. Nesta entrevista exclusiva, concedida por escrito graças à mediação do padre Leandro Rasera, o frei Clodovis, que já foi um expoente da Teologia da Libertação antes de romper com ela, aprofunda algumas das afirmações feitas em sua carta, descreve a relação ideal entre fé e política, comenta algumas respostas equivocadas à crise na Igreja, afirma que muitas das críticas feitas no último encontro do Celam se baseiam em lugares-comuns sem sentido e volta a propor a recuperação da centralidade de Cristo na vida da Igreja. “Uma fé que não oferece mais bens espirituais perde com o tempo todo interesse e decai, como acontece, a olhos vistos, em paróquias que só oferecem ativismo social ou ritos vazios”, afirma o frade servita.
Qual tem sido a repercussão da sua carta ao Celam e de seus livros recentes, em termos de críticas e elogios? Algum bispo (ou mais de um) chegou a procurá-lo para comentar os textos?
Não acompanho os ecos de meus escritos, nem dessa carta. Nem sequer tenho celular. Não me interesso por isso. Se não fosse meu amigo padre Leandro Rasera a publicar minha carta, assim como organizar a “trilogia da fé” publicada pela editora Ecclesiae, tudo teria ficado restrito a um público muito pequeno. Quanto à carta, pelo que me dizem, a reação em geral foi positiva. Haveria como ser contra sua mensagem? Pedir aos bispos que preguem Cristo é como pedir ao sapateiro que faça sapatos ou a um flamenguista que torça pelo Flamengo. Um arcebispo norte-americano tuitou que a carta deveria ser leitura obrigatória para cada bispo mundo afora. Sei de fonte segura que a carta chegou até o papa Leão XIV, e por meio de mais de uma pessoa. Tanto melhor. A carta não passa de um pobre eco da confissão de fé que Pedro faz ao longo dos séculos, na pessoa de seu sucessor – hoje, o papa Leão –: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Esta é a pedra sobre a qual se sustenta toda a Igreja. Caso essa pedra lhe fosse, por impossível, subtraída, a Igreja desmoronaria por inteiro, como qualquer edifício ao qual se retirasse o alicerce.
Por que, então, está sendo necessário “pedir ao sapateiro que faça sapatos”?
No pós-concílio aconteceu essa coisa bem estranha: que a Igreja, em boa parte, tenha prezado mais sua relação com o mundo que com Cristo, seu Esposo e Senhor. Teria havido aí uma “paixão à primeira vista”? Talvez; mas que durou demais, durou. Somos tentados a ver aí a ação daquilo que São Paulo chama o “deus desse mundo”, que, parafraseando o mesmo apóstolo, teria “obscurecido a inteligência de muitos na Igreja para que não vissem a luz do Evangelho resplandecendo no rosto glorioso de Cristo” (cf. 2Cor 4,4).
Na sua carta ao Celam, o senhor disse que os bispos ignoraram o apelo do papa Leão XIV. Ele será capaz de levar o episcopado latino-americano à correção de rumos que o senhor pede?
Como todos veem, o novo papa age com extrema delicadeza. Vai passo a passo, mas com toda a segurança, tudo para não aumentar ainda mais as tensões, até extremas, que existem na Igreja. Ele faz isso não porque seja um grande articulador, um urdidor de acordos. Isso é coisa de políticos, e ele, com toda evidência, não tem nada disso. O que há é que Leão XIV é um papa muito espiritual e está, como tal, absolutamente convencido do primado de Cristo na Igreja. Por isso, procura unificá-la em torno de Cristo, da fé em Cristo, do anúncio de Cristo. Para ele, tudo o mais – pobre, paz, minorias, ecologia – vem em seguida, como consequência. Pode-se observar isso no que disse e fez nesses apenas dois meses de pontificado. Conseguiu, assim, criar um clima tranquilo no seio da Igreja. Esse estilo, autenticamente petrino, vai certamente ajudar nossa Igreja latino-americana a se unificar em torno da fé em Cristo Salvador.
“Somente uma Igreja que se funda em Cristo pode ser verdadeiramente uma ‘Igreja de Cristo’. Uma que se funda nos pobres só poderá ser real e essencialmente uma ‘Igreja dos pobres’, jamais uma ‘Igreja de Cristo’, mesmo se faz questão de se referir a ele.”Frei Clodovis Boff, sobre a Teologia da Libertação.
Esse processo, entre nós, será certamente mais longo, não só pelo tamanho de nossa Igreja, mas também porque a centralização no social tem, entre nós, quase 60 anos de sedimentação, ou seja, desde Medellín [a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em 1968, na Colômbia]. Engana-se quem imagina que, com sua missão principal de “confirmar os irmãos” na absoluta centralidade de Cristo (Lc 22,32), o papa Leão deixará de lado o compromisso da Igreja para com o pobre, a paz, a ecologia e as minorias, como, de resto, já se está se vendo. Será, antes, um compromisso mais forte e mais cristãmente marcado. Pelo que se sabe de suas décadas de trabalho com o povo do Peru, continuará com “cheiro de povo”, sem, no entanto, deixar de ter um “cheiro de Cristo” ainda maior, conferindo, assim, a seu compromisso com o mundo mais qualidade e consistência.
Diante da crise na Igreja, ressurgiu o apelo do tradicionalismo em vários graus: do simples apego à liturgia pré-conciliar, até a crítica aberta ao Vaticano II e ao missal de São Paulo VI. Até que ponto essa é uma resposta legítima?
O tradicionalismo é um fato compreensível, embora nem sempre justificável, numa Igreja em processo de grandes mudanças, como ocorreu durante e após o Vaticano II. Sempre há quem queira salvar a identidade religiosa da Igreja e seus princípios permanentes. Vale aqui lembrar uma importante lição de Aristóteles: “Salve sempre os princípios, que eles o salvarão”. Há, contudo, tradicionalistas que colocam os princípios da fé no lugar errado – por exemplo, na missa tridentina, no uso da batina e dos paramentos romanos, na lei do celibato sacerdotal e, quando se trata da doutrina social, na intocabilidade da propriedade privada e no regime monárquico. E, quando esses pretensos “princípios” são questionados, esses tradicionalistas rompem ou ameaçam romper com a Igreja. Essas coisas não são nulas ou indiferentes, mas também não são, com toda evidência, o essencial na Igreja. São, mais precisamente, matéria de conveniência. Convém, por exemplo, que a missa seja em latim? Convém que as mulheres usem o véu na missa? Convém que padres e freiras tragam o hábito religioso? Como o que é conveniente ou inconveniente depende muito do juízo e do gosto de cada um, recomenda a prudência que se deixe, o quanto possível, essas coisas livres.
É certo, por outro lado, que, no discernimento do que é ou não conveniente para toda a Igreja, entra o juízo qualificado do papa, seu chefe supremo. E, quando um papa decidiu pelo que julga conveniente, sua decisão deve ser absolutamente acolhida, mesmo na hipótese de não ter sido a melhor decisão. Se isso vale até dentro da família (quando, por exemplo, o pai toma uma decisão errada) e também na sociedade civil (como quando um juiz emite uma sentença equivocada), não valerá, com mais razão ainda, para essa instituição totalmente especial que é a Igreja? Qualquer cristão que seja verdadeiramente humilde aceitará esses tipos de decisão. Ficará esperando e orando para que as coisas venham à luz e as decisões erradas sejam corrigidas. Portanto, na questão do que se pode ou não mudar na Igreja, importa muito distinguir entre o essencial e o acidental, a substância e o modo, o “direito divino” e o “direito eclesiástico”. Mas não é apenas aos tradicionalistas que isso se aplica.
Quem mais está se comportando da mesma forma?
O que eu disse sobre os tradicionalistas vale também para os católicos “progressistas” – talvez mais ainda para estes que para aqueles. Muitos desses “progressistas” saem da Igreja ou ameaçam sair se ela, por exemplo, não der mais poder aos leigos e às mulheres em particular, ou se não liberar o casamento para os padres que o desejam, e mesmo para os casais homoafetivos. Tem cabimento isso? Mas tal é a realidade. É sobretudo por questões desse gênero que saem da Igreja, na Alemanha, mais de mil católicos por dia – uma coisa espantosa! É como se, para eles, o que importa na Igreja não fosse tanto Cristo, sua palavra e seu anúncio, mas principalmente questões como as evocadas, que são, na verdade, secundárias, circunstanciais, e que, no entanto, estão no topo da agenda do polêmico “Caminho Sinodal” alemão, apesar da oposição de poucos bispos e teólogos. E o povo? O papa Francisco fez ver, em carta, que o debate daquelas questões era coisa de minorias intelectuais, enquanto a massa dos alemães não estava interessada naquelas questões, esperando, antes, que os bispos lhes viessem falar de Deus e sobretudo lhes pregar o Evangelho.
Gostaria que o senhor discorresse mais sobre as dissonâncias apontadas em sua carta, especialmente aquela entre magistério episcopal e assessoria teológica. Os assessores “se apoderaram” das conferências episcopais?
Na carta aberta, alertei os irmãos bispos para o fato de que, em nossa Igreja continental, se cuida mais do social que do espiritual. Lembrei-lhes o óbvio: a necessidade de sempre voltar ao primado do espiritual, que tem seu ponto central em Cristo Salvador. Ressalvei que o alerta aos bispos valia no geral, e não no particular. Por isso, haveria certamente, quanto a esse ponto essencial, certa dissonância entre um bispo e outro bispo, e entre bispos e seus assessores teológicos. De onde viria tal dissonância? Não parece que viria de cima, dos bispos, pois estes, em geral, estão em consonância com a doutrina da fé; do contrário, a Santa Sé interviria. Viria, então, de baixo, dos teólogos-assessores? Tudo leva a crer que sim.
Ninguém duvida de que a teologia que caracterizou a Igreja do nosso continente foi – e é, ainda, em boa parte – a “Teologia da Libertação”, que é, por sua natureza, uma teologia que se quer feita em ligação estreita com os pastores (chamados “proféticos”) e o povo, especificamente o pessoal das CEBs e das pastorais sociais. Daí ter ficado toda a nossa pastoral marcada por ela em maior ou menor grau, também (sejamos honestos) por seus elementos positivos, que os tem certamente. E aqui se toca num punctum dolens et gravis. Pois, se essa teologia contém graves equívocos, como alertou a Santa Sé com dois documentos nos meados dos anos 1980, então uma Igreja que a toma por base será contaminada por ela em maior ou menor medida. Uma teologia dissonante só pode gerar uma Igreja dissonante, e tão dissonante quanto o é a teologia em que se baseia e inspira.
A dissonância, então, é ainda mais profunda?
Se formos para a raiz da referida dissonância, deve-se dizer: se a “Teologia da Libertação”, como ela mesmo diz e faz, tem como fonte os pobres e sua libertação, ela é radicalmente dissonante em relação à fé, pois essa tem Jesus Cristo e sua salvação como fonte, vindo os pobres e sua libertação como consequência, e das mais urgentes. Se isso é verdade, como julgo ter demonstrado no livro A crise da Igreja católica e a Teologia da Libertação, de 2023, então, uma Igreja será tanto mais dissonante com a fé quanto mais se inspire nesta teologia. Por conseguinte, somente uma Igreja que se funda em Cristo pode ser verdadeiramente uma “Igreja de Cristo”. Uma que se funda nos pobres só poderá ser real e essencialmente uma “Igreja dos pobres”, jamais uma “Igreja de Cristo”, mesmo se faz questão de se referir a ele. É o mesmo que se passa com fruteiras: da videira só pode vir uva e do limoeiro, limão – nunca uva.
Isso, entretanto, vale na teoria, pois, verificar na prática qual igreja e o quanto ela se inspira numa teologia dissonante é competência de cada bispo em sua diocese e da Santa Sé em toda a Igreja. Por ora, bastam essas balizas essenciais para melhorar a consonância entre bispo e bispo, e entre bispo e teólogo, tudo na base da consonância de todos com a Sacra doctrina.
O papa Leão XIV celebra missa em Castel Gandolfo: frei Clodovis diz que pontífice está "absolutamente convencido do primado de Cristo na Igreja". (Foto: Tiziana Fabi/EFE/EPA/Pool)
Na mesma reunião do Celam realizada no Rio de Janeiro, a CNBB apresentou um relatório sobre a Igreja no Brasil que criticava “devocionismos sem conteúdo transformador”. Como o senhor responde a esse tipo de crítica, que desvaloriza a religiosidade sem “consequência social”?
É comum em nossa Igreja valorizar a fé em função de sua utilidade social, sem se dar conta de que a fé é, antes de tudo, relação com Deus e não com a sociedade. Isso vem depois e como derivação. Assim, usar a fé como meio para o social é instrumentalizá-la, profaná-la e por fim destruí-la, pois uma fé que não oferece mais bens espirituais perde com o tempo todo interesse e decai, como acontece, a olhos vistos, em paróquias que só oferecem ativismo social ou ritos vazios. Esse é o resultado final dessa filosofia vulgar que é o utilitarismo, aplicado à fé. De fonte de vida e missão, tornou-se ideologia.
Voltou-se a criticar, na última Assembleia do Celam, uma fé “desconectada da realidade”, insistindo numa fé “sociotransformadora”. A esse respeito, importa tomar consciência de que a fé visa, antes de tudo, não a transformação da sociedade, mas a conversão da pessoa. É como proclamou Medellín em sua mensagem final: “Não há uma América Latina nova sem homens novos”. Ademais, o efeito da fé na sociedade exige, sim, projetos conscientes, mas é mais resultado natural de sua vivência ao longo dos anos do que de objetivos intencionais. É o que aconteceu com a própria civilização ocidental: ela foi mais fruto da vivência secular da fé do que de planos elaborados. Os que evangelizaram a Europa queriam apenas fazer cristãos e nada mais. E, no entanto, sua obra resultou em imensos efeitos sociais, como a criação das universidades, a rede de obras de caridade, as catedrais góticas, o canto gregoriano, o senso da dignidade de cada pessoa, da mulher e especialmente do pobre, e a lista poderia se prolongar.
Essa ideologia utilitarista contaminou o discurso sobre fé e política?
Para dizer que o cristão tem de se conscientizar e se engajar na sociedade, bispos e teólogos hoje falam da necessidade de “unir fé e política”. Essa fórmula é ainda muito vaga e até mesmo perigosa, porquanto leva a tomar fé e política como duas forças homogêneas, que devem se ajudar entre si, como irmão e irmã. Mas isso é uma ilusão, pois, querendo articular fé e política desse jeito, acaba-se, na prática e sem perceber, por dar prioridade à política sobre a fé, que acaba sendo tão explorada pela política que termina sucumbindo, exatamente como faz o mata-pau. O último degrau a que chega a relação equivocada daquele binômio é a política cancelando totalmente a fé, revelada ou não. É a tragédia a que chegou, por um lado, o comunismo ateu e, por outro, o laicismo liberal. O emblema horroroso do primeiro é o gulag; o do segundo é a paródia infame e grotesca da Última Ceia na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris.
Apesar disso tudo, é principalmente assim que, desgraçadamente, se procede na Igreja hoje, quando se trata de relacionar fé e política, especialmente quando ambas são postas em termos de Igreja e Mundo, binômio marcante do Vaticano II.
“A fé, se não for cotidianamente alimentada, não subsistirá, perecendo miseravelmente, como ocorre com nosso corpo, sem sua nutrição regular.”Frei Clodovis Boff, sobre as críticas à “pastoral da conservação”.
Se a relação igualitária entre fé e política não funciona, qual é, então, a que funciona?
É aquela, e só aquela, na qual a fé não se iguala à política, mas tem sobre ela o primado e, a partir daí, julga e inspira a política. Com isso, a fé não desrespeita a política em sua autonomia; antes, a pressupõe e a eleva. É justamente como faz a Graça com a Natureza, segundo o dito: Gratia supponit naturam et perficit. Esse modo de articulação não é novidade alguma, mas é conhecido e praticado por toda boa teologia. A política precisa da fé – tanto como sal, para se manter sadia, quanto como fermento, para crescer. Para isso, porém, é preciso superar os dogmas atuais de “sociedade secular” e de “Estado laico”, uma problemática árdua que discuti no último volume, a sair, de minha trilogia O livro do sentido.
Para que essa questão fique mais clara, vai aqui um exemplo – bem pertinente, aliás. Diante das críticas contra o costume de fazer a Campanha da Fraternidade durante a Quaresma, um conhecido bispo nosso achou por bem sair em sua defesa. Para justificar as CFs, contentou-se em argumentar que, se um cristão precisa viver a Quaresma, também não pode ficar alheio aos dramas do povo. Ora, isso ninguém discute. O que se discute é se a Quaresma e os dramas do povo se equivalem; se o aspecto espiritual da Quaresma tem o mesmo peso que o aspecto social da CF. Mais concretamente, colocou temas como pobreza, ecologia, moradia e outros semelhantes no mesmo plano que temas como o próprio Cristo, a palavra de Deus, a conversão e outras verdades afins. Vimos acima que isso é um equívoco, e equívoco grave, que leva, na prática, ao rebaixamento da fé e à sua decadência. Sucede, assim, exatamente o contrário do que visa a Quaresma: em vez de converter, acaba desconvertendo. Os efeitos deletérios de pôr lado a lado o espiritual e o social não se percebem logo, mas com o tempo. É assim que se torna legítimo perguntar: nesta contínua queda dos católicos no Brasil, registrada pelo IBGE, a CF não tem lá sua responsabilidade?
E qual é a sua impressão a esse respeito?
Há pelo menos duas gerações de fiéis que, da Quaresma, só sabem a Campanha da Fraternidade respectiva. Para eles, Quaresma é a “Quaresma da CF” e não a “Quaresma de JC”; A Via Sacra é a Via Sacra do Povo, e não a Via Sacra de Cristo. Não que não haja, no material da CF, referências espirituais, mas elas são como os acessórios de um computador qualquer. Diante da importância e urgência de questões como fome, ecologia ou moradia, o pobre do Cristo desaparece ou vira detalhe. Com toda essa avalanche de textos da CF, vez por vez novos, onde foi parar a imensa riqueza espiritual da liturgia quaresmal, contida em seus textos milenares? É de chorar. Há, contudo, algum consolo em ver que há paróquias tentando combinar Quaresma e CF segundo um modelo assimétrico de “fé e política”, reconhecendo à fé sua soberania plena. Privilegiam, assim, a liturgia quaresmal, sem deixar de projetar sua luz sobre o tema da CF em curso. Articulação trabalhosa, sejamos sinceros, pois os atuais textos das CFs só ajudam infelizmente por seu material, digamos, “bruto”, e não por sua enviesada teologia.
Outra questão que ficou sem resposta, na defesa que o mencionado bispo fez da CF, é sobre o momento em que ela é realizada: será mesmo necessário que a CF se faça justamente durante a Quaresma? Não seria melhor transferi-la para outro tempo, beneficiando assim a ambas: à Quaresma, que continuaria mantendo toda a sua densidade e centralidade no ciclo litúrgico; e à CF, podendo desdobrar mais livremente seu conteúdo próprio?
Que outros lugares-comuns o senhor identificou nas discussões do Celam?
Dou um exemplo importante: a velha crítica à paróquia como “estrutura superada” voltou no último encontro do Celam. Repisaram-se as alegações de sempre: que a atual paróquia não converte, que não leva à missão, que está desconectada com a realidade e, principalmente, que só faz uma “pastoral de conservação”. E se pressiona por uma “Igreja em saída”. Sob essa crítica, opera um monte de lugares-comuns, de ideias impensadas. Dessas, só pego aqui duas. Começo por “desconexão com a realidade”, que até já mencionei acima. Meu Deus, “realidade” será apenas a social, especialmente a dos pobres, minorias e outros segregados? E, mesmo no âmbito social, “realidade” não será também essa coceira irresistível chamada “busca do espiritual” e que ataca hoje o corpo da sociedade? Se até jornalistas e sociólogos veem isso, não o veriam os “especialistas da área” que são os teólogos e os bispos? E “realidade” não é também, e mais ainda, este “oceano sem praias da substância” de que fala São João Damasceno, em que se encontram a graça, o perdão dos pecados, a fé, a caridade e, mais que tudo isso, Deus, o Ens realissimum de Descartes, a “Realidade das realidades” dos mestres da Índia, e, de modo ainda superior, “Aquele que é” da Bíblia, em confronto do qual tudo o mais simplesmente “não é”, enfim, a Trindade sacrossanta e bem-aventurada?
Alguém dirá que tudo isso é muito especulativo, místico demais, enfim, inatingível. Respondo com São Paulo. O que é um cristão adulto ou, nas palavras do Apóstolo, o cristão “perfeito” ou “espiritual”, a não ser aquele que vive dessas realidades sobrenaturais (1Cor 2,6.15)? E quem são os pastores, a não ser aqueles que operam com elas ou, como os chama o mesmo Apóstolo, os “administradores dos Mistérios de Deus” (1Cor 4,1)? E eu pergunto ao teólogo-assessor: como você vem me falar da “realidade” como se nesse termo oceânico coubessem apenas os seus pobres e oprimidos, suas mulheres, negros e índios discriminados, sua fauna e flora poluídas e devastadas, e mesmo sua pobre terra em perigo de morte sob as bombas atômicas? Não pense que eu esteja desvalorizando essas realidades, nem atenuando os dramas horrendos que trazem, e menos ainda desmobilizando o ânimo dos militantes que os enfrentam. Muito pelo contrário: se pleiteio aqui a conexão desses dramas com a realidade viva e sagrada da fé, é porque só assim aqueles militantes serão bastante fortes para superar aqueles dramas, conferindo-lhes, além disso, uma dignidade igualmente sagrada.
Ainda houve menções a uma “pastoral da conservação”, que não estaria atendendo às exigências atuais...
O próprio termo “pastoral da conservação”, que também se lamentou na derradeira Celam, é outro lugar-comum. A fé não precisaria de “conservação”, se até nós precisamos “conservar a saúde”? A fé, se não for cotidianamente alimentada, não subsistirá, perecendo miseravelmente, como ocorre com nosso corpo, sem sua nutrição regular. E o regime alimentar básico pode, por acaso, ser outro diferente da Palavra e dos Sacramentos – suspeitos, naquela assembleia, de “doutrinarismo” e “sacramentalismo”? Como pode um cristão se sustentar e crescer espiritualmente sem esse “feijão com arroz” de todo o dia? A rotina de uma paróquia, com suas missas dominicais, suas primeiras comunhões, suas crismas e tantas outras práticas, é tão necessária para a vida cristã como é a rotina de uma casa, de um negócio, de uma escola, de um governo, tudo para o bom andamento da vida. Tais rotinas não são necessariamente rotineiras. Basta que sejam feitas, como se diz, “com amor”, pois o amor nunca repete: renova.
Os que desdenham o “conservadorismo paroquial” não veem que a boa rotina de uma paróquia é também base para as necessárias mudanças e inovações na Igreja. Agora, pergunto ao querido pároco: de onde saem as vocações, as novas comunidades e movimentos, a não ser desse tecido que a paróquia tece no seu dia a dia? Sei que a rotina pode se degradar em burocratismo, mas nem por isso deve ser eliminada com novidades em série. Seria como pedir uma roupa qualquer ou mesmo um vestido novo sem ter um tecido à disposição. A estrutura atual da paróquia não é impedimento para que uma paróquia seja viva, cresça e inove. Para isso, ela precisa mais de alma que de estrutura. E a alma de uma paróquia não será o padre? A alma viva será tanto mais vivificadora quanto mais espiritual for e quanto maior for seu zelo pastoral. A prova mais clara disso é aquele que, não por nada, foi posto com o grande exemplo do padre: o Santo Cura de Ars.
Marcio Antonio Campos
Marcio Antonio Campos é editor de Opinião da Gazeta do Povo. Autor de "A razão diante do enigma da existência" e coautor de "Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé", mantém a coluna quinzenal Tubo de Ensaio e uma coluna semanal sobre temas relacionados à Igreja Católica. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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