O homem que não se ajoelhou
- Clipping Vitae
- 25 de jul.
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Filipe Martins suportou o que muitos preferiram trocar por uma mentira conveniente
Numa cela escura em Curitiba, entre paredes úmidas e a vigilância contínua dos capangas do regime, Filipe Martins suportou o que muitos — incluindo homens supostamente treinados para a resistência, tal como os integrantes das Forças Especiais do Exército — preferiram trocar por uma mentira conveniente. Sofreu o que o vocabulário dos juristas, sempre asséptico, chama de “isolamento cautelar”, mas que a corregedora de presídios da capital paranaense, Stella Burda, nomeou com mais honestidade: isolamento em solitária, ausência total de luz, mais de 70 dias sem ver a mulher e perseguições internas confirmadas por carcereiros e presos. A denúncia, feita em depoimento formal, foi prontamente hostilizada pela PGR, que, em vez de investigar a tortura, tentou intimidar a testemunha ao silêncio. Num gesto digno de regimes totalitários, o problema deixou de ser a violação dos direitos, e passou a ser o vazamento da violação.
A jornalista Ana Paula Henkel tornou público o escândalo. Mas escandaloso mesmo foi o aparente desinteresse da sociedade brasileira pelo caso — sugerindo que, em termos de atenção aos direitos humanos, não estamos em posição de arrotar orgulho nacional contra uma pretensa ingerência estrangeira.
O caso remete às páginas imortais de Arthur Koestler. Em O Zero e o Infinito, o protagonista Rubachov, preso nos expurgos stalinistas, é torturado não apenas fisicamente, mas psicologicamente, até confessar crimes inexistentes em nome de um ideal corrompido. No ambiente mental totalitário, confessar-se culpado era uma prova de pureza revolucionária. Melhor ser executado como herege arrependido do que viver como cético. Assim, os julgamentos-espetáculo do stalinismo foram povoados por homens que, já desprovidos de alma, e visando a uma espécie de redenção histórica, mendigavam perdão ao Estado que os destruíra.
Filipe Martins, ao contrário, negou-se a reproduzir esse rito profano. Perante os seus algozes, não confessou crime inexistente, não delatou aliados, não se prostrou diante da narrativa oficial. Seu corpo esteve aprisionado, mas a sua alma permaneceu incólume. E é esse o crime imperdoável, aos olhos dos sacerdotes do novo regime: a altivez. Foi isso que desnorteou o auxiliar do tirano de toga, desesperado em interromper a palavra fustigante de Martins, o preso político que, com a simples presença de seu caráter inquebrantável, não apenas revelava a pequenez existencial de um burocrata símbolo da banalidade do mal, como também demolia todo o castelo de areia do regime de exceção.
No Brasil do século 21, há mesmo algo de soviético na estética da repressão. O dissidente não é julgado por um crime, mas por uma condição: a de pertencer ao grupo errado, a de pensar fora da cartilha, a de não reverenciar o ridículo que veste toga. A “democracia” que se diz ferida por memes e opiniões é a mesma que manteve um cidadão preso ilegalmente, sem julgamento, por mais de um ano — como aviso exemplar aos demais.
A analogia com Sergei Magnitsky é inevitável. O advogado russo morreu nos cárceres da polícia de Putin depois de denunciar a corrupção no seio da Nomenklatura. Foi espancado, privado de tratamento médico, e por fim assassinado. Sua morte deu origem à Lei Magnitsky, legislação internacional que permite aos Estados Unidos sancionar indivíduos estrangeiros por violação de direitos humanos. Hoje, a possibilidade de ver Alexandre de Moraes incluído entre os nomes puníveis por essa legislação já não é mais uma “teoria da conspiração”, mas uma realidade iminente.
Mas, se o bravo Sergei Magnitsky morreu, outro bravo, Filipe Martins, continua vivo. E é isso — ironia das ironias — o que mais incomoda seus algozes, um incômodo estampado no desconforto do substituto de Alexandre de Moraes na oitiva. Porque — ainda que isso não tenha dado certo com Sergei — um homem morto sempre pode ser transformado em estatística, em “excesso”, em “erro de procedimento”. Já um homem vivo, que se recusa a curvar-se, é uma acusação em carne e osso. É a refutação viva do sistema. É o pesadelo dos abusadores de autoridade.
Como Václav Havel, Martins compreendeu que, em tempos de mentira institucionalizada, a verdade não precisa gritar — basta existir. Se o dissidente tcheco transformou as suas peças e cartas em atos de resistência moral, Filipe transformou o próprio silêncio em clamor. O que a censura não conseguiu apagar a cela escura tampouco conseguiu calar.
Talvez por isso o regime esteja inquieto. Nota-se a apreensão no ar, e alguns de seus próceres já ensaiam o clássico adoecimento mental causado pela húbris. Para disfarçar o medo, os inquisidores multiplicam suas loas ao “Estado Democrático de Direito”, uma expressão que, de tão prostituída, perdeu toda a dignidade. Enquanto isso, dia após dia, Filipe Martins torna-se a prova viva de que há ainda quem se recuse a fazer da própria consciência uma moeda de troca. Para esses, a liberdade não se negocia com habeas corpus humilhantes, pois eles sabem que a alma, uma vez entregue a Mefistófeles, não pode ser resgatada por petição alguma. Se há justiça fora dos autos, ela começará por reconhecer esse fato elementar: o que se passa hoje no Brasil não tem nada a ver com direito, mas com uma patologia política encarnada numa alma individual corrompida e noturna. Afinal, um poder que, ignorando solenemente a Constituição, prende para coagir e silencia para governar já não é, por óbvio, um poder legítimo.
É justamente contra essa usurpação do poder que, com o rosto sereno e a lógica afiada, se ergue a figura heroica de Filipe Martins. Ao recusar assumir a persona de um Rubachov tropical, o jovem preso político preservou o que resta da honra nacional. E lembrou aos usurpadores que há algo ainda mais assustador do que a crítica proveniente de fora: o desprezo silencioso de quem, ciente de que a verdade já foi até mesmo pregada numa cruz, não se rendeu aos poderes deste mundo.
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