Seis vezes em que o STF usurpou o papel do Congresso Nacional
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Em tese, a divisão clássica dos três poderes é simples: o Legislativo cria a lei, o Executivo governa em conformidade com a lei e o Judiciário julga com base na lei. Mas, no Brasil, as coisas não são tão simples.
Nos últimos anos, decisões do STF foram além do poder constitucional da corte e mudaram a legislação elaborada pelo Congresso Nacional. O Legislativo continua formalmente em funcionamento. Na prática, entretanto, matérias de competência legislativa vêm sendo decididas diretamente pela corte, sem mediação parlamentar. Questões sensíveis, especialmente em temas morais, passaram a ser decididas por votos de ministros do STF, sob o argumento de proteção de direitos fundamentais ou controle de constitucionalidade.
Essas medidas têm sido interpretadas como evidências do desequilíbrio entre os poderes e um esvaziamento da função legislativa. O risco é que essa dinâmica, ainda que sob pretextos legais, resulte em uma espécie de fechamento informal do Parlamento.
No Congresso, as tentativas de reação têm esbarrado na falta de consenso. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2011, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), exigia que o Congresso tivesse a palavra final quando o STF derrubasse uma emenda à Constituição. A PEC 3/2023, do deputado Domingos Sávio (PL-MG), impediria o STF de usar a inércia do Congresso como justificativa para suas decisões. O Projeto de Lei (PL) 4754/2016, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), tipificava como crime de responsabilidade a atuação de ministros do STF fora da sua "função jurisdicional". Mas as propostas não chegaram perto de virar lei.
Veja a lista com seis casos em que o STF usurpou as atribuições do Congresso.
1) 2011- STF cria união civil entre pessoas do mesmo sexo
Em 5 de maio de 2011, o STF julgou em conjunto duas ações: a ADI 4277, proposta pela Procuradoria-Geral da República, e a ADPF 132, proposta pelo governo do Rio de Janeiro, então sob o comando de Sérgio Cabral. Ambas pretendiam estender os direitos de servidores estaduais a casais homoafetivos.
O resultado do julgamento foi unânime. Todos os ministros consideraram que casais do mesmo sexo têm os mesmos direitos civis garantidos a casais heterossexuais em união estável. Os magistrados afirmaram ter agido com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proibição de discriminação.
Dois anos depois, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido à época pelo ministro Joaquim Barbosa, deu um passo além e determinou que os cartórios não poderiam recusar o casamento (e não só a união civil) entre pessoas do mesmo sexo. Isso consolidou, por via administrativa e judicial, um direito que até hoje o Legislativo não aprovou formalmente.
2) 2012 - STF expande casos legais de aborto
O STF decidiu também sobre o aborto ao perceber que o Congresso não mudaria o tipo penal do crime previsto contra a vida do feto. Em 2012, a corte autorizou a interrupção da gravidez em casos de bebês anencéfalos, ampliando o entendimento de aborto legal além dos casos previstos no Código Penal (estupro e risco de vida para a mãe). Essa decisão foi tomada mesmo sem legislação específica aprovada pelo Congresso.
Em 2016, a Segunda Turma do STF também sinalizou que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação era inconstitucional, embora essa decisão tenha tido efeito restrito ao caso concreto em análise.
Em abril de 2024, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a resolução número 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que restringia a realização do procedimento de assistolia fetal em casos de aborto legal após 22 semanas de gestação. A decisão foi tomada por meio de uma liminar em uma ação que questionava a competência do CFM para editar normas que, na prática, estabeleciam um limite gestacional para o procedimento. Pelo CFM, a assistolia fetal não deveria ser realizada na etapa final da gestação, quando o parto já pode ser induzido.
A suspensão da norma provocou reação de setores políticos e técnicos, que viram na medida uma interferência direta do Judiciário em um tema sensível sobre o qual cabe ao Congresso Nacional legislar. Parlamentares argumentaram que a resolução do CFM tinha caráter técnico e buscava regulamentar a atuação dos profissionais de saúde conforme protocolos médicos.
3) 2019 - STF equipara homofobia ao crime de racismo
Apesar de diversos projetos de lei tramitarem há anos para criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, nenhum foi aprovado. Com base nisso, o STF foi acionado por meio de duas ações: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26), proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS), e um Mandado de Injunção coletivo (MI 4733), apresentado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). O argumento de ambos: “inércia legislativa”.
As ações alegavam que a falta de legislação específica feria preceitos constitucionais de dignidade da pessoa humana e igualdade, previstos nos artigos 1º e 5º da Constituição Federal. A argumentação central era de que o Congresso, ao não legislar sobre a matéria, criava um vácuo jurídico que deixava desprotegida uma parcela da população historicamente vulnerável à violência e à discriminação. Assim, os autores pediam que o STF reconhecesse essa omissão e aplicasse, por analogia, a Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) aos casos de homofobia e transfobia.
O julgamento foi iniciado em 2019 e se estendeu por várias sessões. Ao final, por maioria de votos, os ministros do STF decidiram que, enquanto o Congresso não aprovasse lei específica sobre o tema, atos de homofobia e transfobia deveriam ser enquadrados nos moldes do crime de racismo. O entendimento adotado foi o de que a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero atinge a dignidade humana de maneira semelhante ao preconceito racial e, portanto, merecia proteção jurídica equivalente.
A decisão do STF teve efeito imediato. Com isso, atos discriminatórios contra pessoas gays e transexuais passaram a ser enquadrados como crime de racismo, com penas que podem chegar a até cinco anos de reclusão.O Legislativo ainda não aprovou uma lei específica sobre o tema.
4) 2024 - STF permite drogas para consumo próprio
Na prática, o Supremo liberou o porte de drogas para consumo próprio no país. O processo judicial teve início em questionamentos sobre a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Essa norma, embora tenha amenizado a punição para o porte de drogas para uso pessoal, não estabeleceu critérios objetivos para diferenciar usuário de traficante, e deixou a avaliação a cargo da autoridade policial ou judicial.
O STF foi provocado a se manifestar por meio do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, com repercussão geral. Ou seja, a decisão serviria de referência para todos os casos semelhantes no país.
Durante o julgamento, iniciado em 2015 e retomado em 2023, os ministros debateram a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que prevê sanções administrativas para o porte de entorpecentes para consumo próprio. Em 2024, o STF formou maioria para declarar parte desse artigo inconstitucional. A corte também estabeleceu que a posse de até 40 gramas, ou seis plantas fêmeas da cannabis, não configuraria tráfico.
A decisão gerou forte reação no Congresso, que prometeu legislar para restringi-la. Até agora, isso não aconteceu.
5) 2025 - Marco temporal indígena: STF anula tese do Congresso
O marco temporal é uma tese jurídica usada para definir o direito à demarcação de terras indígenas no Brasil. Segundo essa tese, os povos indígenas só teriam direito a terras que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. Ou seja: se uma comunidade indígena não estivesse ocupando determinado território naquela data, ela não poderia reivindicá-lo como terra tradicional indígena, mesmo que tenha sido “historicamente” sua.
Em 2023, a Corte rejeitou, por 9 votos a 2, a tese jurídica que condicionava o direito dos povos indígenas à demarcação de terras à comprovação de ocupação contínua desde a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. O julgamento teve repercussão geral.
No ano seguinte, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.701, que instituiu o marco temporal de forma explícita. Mas o STF decidiu que a palavra final cabe a ele: a corte suspendeu todas as ações judiciais relacionadas à constitucionalidade da lei e iniciou uma comissão de conciliação, coordenada pelo ministro Gilmar Mendes, com a justificativa de que era preciso buscar um consenso sobre o tema.
Após meses de debates, em junho de 2025, a comissão apresentou uma proposta de alteração da Lei nº 14.701, mantendo a tese do marco temporal mas sem consenso entre as partes envolvidas.
6) 2025 - STF derruba decisão do Congresso sobre IOF
Em julho de 2025, o ministro Alexandre de Moraes liberou o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), restaurando a validade do Decreto 12.499/2025, editado pelo governo Lula. A decisão veio após o Congresso Nacional derrubar o decreto presidencial, alegando abuso de poder de tributar. A Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu ao STF, defendendo a legalidade da medida. Moraes suspendeu os efeitos da decisão do Congresso e dos decretos, convocando uma audiência de conciliação entre os poderes que terminou sem acordo. Com isso, o ministro resolveu que caberia a ele decidir sobre a constitucionalidade da medida.
Moraes concluiu que o governo não cometeu desvio de finalidade e que o decreto respeitou os limites legais e a função regulatória do IOF. O Ministério da Fazenda comemorou a decisão e afirmou que ela reforça o equilíbrio entre os poderes e a segurança jurídica.
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